05/11/2016

RESSURREIÇÃO - MIGUEL TORGA

                 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 
 
 
 
 
 
 
 
RESSURREIÇÃO
 
 
 
 
Porque a forma das coisas lhe fugia,
O poeta deitou-se e teve sono.
Mais nenhuma ilusão apetecia,
Mais nenhum coração era seu dono.
 
Cada fruto maduro apodrecia;
Cada ninho morria de abandono;
Nada lutava e nada resistia,
Porque na cor de tudo havia outono.
 
Só a razão da vida via mais:
Terra, sementes, caules, animais
Descansavam apenas um momento.
 
E o vencido poeta despertou
Vivo como a certeza de um rebento
Na seiva do poema que sonhou.
 
 
Miguel Torga 







 
 
 
 
 
 
 
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Fotografia de Fernando Pedrosa
 
 
 
 
 
 

04/10/2016

P O R T U G A L

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

P O R T U G A L
 
 
O que fazes tu de olhar consumido nas fímbrias do nevoeiro?
 
Não adormeças os teus sentidos, nem te demores na contemplação
 
das sombras delirantes e abstratas da esperança vã
 
feita irmã da ilusão.
 
De lá não hão-de voltar em tua salvação
 
os heroicos soldados sem nome e com as espadas em sangue.
 
Há um eco no teu peito, lamentoso e antigo, refém do teu destino
 
de glória ou de má sorte, a quebrar o silêncio
 
   sagrado das esplendorosas catedrais de vidro e de oiro.
 
Sob as finas rendas de pó, dignamente, deixa repousar
 
o mistério, o desaire e o brilho e prossegue o teu caminho.
 
O sol ainda aqui está
 
a semear campos de claridade no horizonte.
 
Nunca deixou de te moldar ondas de bravura e caravelas no rosto
 
e nem o vento parou de te apontar um caminho novo.
 
 
 
 Fernando Pedrosa
 
 
 
 
 
 
 
 

  
 











 
 

 
 

Fotografia de Fernando Pedrosa


Nota: as imagens foram captadas no Mosteiro de Santa Maria da Vitória - Batalha - Leiria

 
 
 

21/09/2016

 
 
  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Bastava-nos Amar
 
 
Bastava-nos amar. E não bastava
o mar. E o corpo? O corpo que se enleia?
O vento como um barco: a navegar.
Pelo mar. Por um rio ou uma veia.
 
Bastava-nos ficar. E não bastava
o mar a querer doer em cada ideia.
Já não bastava o olhar. Urgente: amar.
E ficar. E fazermos uma teia.
 
Respirar. Respirar. Até que o mar
pudesse ser amor em maré cheia.
E bastava. Bastava respirar
 
a tua pele molhada de sereia.
Bastava, sim, encher o peito de ar.
Fazer amor contigo sobre a areia.
 
 
Joaquim Pessoa, in "Português Suave"
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Fotografia de Fernando Pedrosa
 
 

17/08/2016

                                                                            










 
 
 
 
 
 








 
 
 
 
 
 
 
 
 
Ode ao Gato
 
 
 
 Tu e eu temos de permeio
a rebeldia que desassossega,
a matéria compulsiva dos sonhos.
Que ninguém nos dome,
que ninguém tente
reduzir-nos ao silêncio branco da cinza,
pois nós temos fôlegos largos
de vento e de névoa
para de novo nos erguermos
e, sobre o desconsolo dos escombros,
formarmos o salto
que leva à glória ou à morte,
conforme a harmonia dos astros
e a regra elementar do destino.
 
 
José Jorge Letria, in "Animália Odes aos Bichos"
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 










Fotografia de Fernando Pedrosa
 
 
 
 
 

31/07/2016

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 















MAR
 
 
Bebo-o a colherinhas de olhos
 
na taça da manhã.
 
E nem ele se esgota,
 
nem eu me sacio.
 
 
Luísa Dacosta, in "A Maresia e o Sargaço dos Dias"
 
 
 
 
 
 

























Fotografia de Fernando Pedrosa
 
 
 
 
 

04/07/2016

 
 
 
 
















FIM
 
 
 
Já não somos os mesmos, sufocámo-nos nas lavaredas de fogo,
ateadas ao sangue que era novo e vibrante.
Deixámos secar os lábios, as flores e os poemas nas dobras dos lençóis,
e a nossa casa, lentamente, em gritos de silêncio, foi-nos desabitando por dentro.
Já não somos os mesmos, somos o sangue que se esgotou.
 
 
 
Fernando Pedrosa
 
 
 
 
 
 














Fotografia de Fernando Pedrosa
 
 

21/06/2016







 














SÃO AS PESSOAS COMO TU
 
 
 
São as pessoas como tu que fazem com que o nada queira dizer-nos algo,
as coisas vulgares se tornem coisas importantes e as preocupações
maiores sejam de facto mais pequenas. São as pessoas como tu que dão
outra dimensão aos dias, transformando a chuva em delirante orvalho e
fazendo do inverno uma estação de rosas rubras.
As pessoas como tu possuem não uma, mas todas as vidas. Pessoas que
amam e se entregam porque amar é também partilhar as mãos e o corpo.
Pessoas que nos escutam e nos beijam e sabem transformar o cansaço
numa esperança aliciante, tocando-nos o rosto com dedos de água pura,
soltando-nos os cabelos com a leveza do pássaro ou a firmeza da flecha.
São as pessoas como tu que nos respiram e nos fazem inspirar com ela o
azul que há no dorso das manhãs, e nos estendem os braços e nos
apertam até sentirmos o coração transformar o peito numa música
infinita. São as pessoas como tu que não nos pedem nada mas têm sempre
tudo para dar, e que fazem de nós nem ícaros nem prisioneiros, mas
homens e mulheres com a estatura da vida, capazes da beleza e da justiça,
do sofrimento e do amor. São as pessoas como tu que, interrogando-nos,
se interrogam, e encontram as respostas para todas as perguntas nos nossos
olhos e no coração. As pessoas que por toda a parte deixam uma
flor para que ela possa levar beleza e ternura a outras mãos. Essas pessoas
que estão sempre ao nosso lado para nos ensinar em todos os momentos,
ou em qualquer momento, a não sentir o medo, a reparar num gesto, a
escutar um violino. São as pessoas como tu que ajudam a transformar o mundo.
 
 
Joaquim Pessoa, in "Ano Comum"




















 
 
Fotografia de Fernando Pedrosa
 
 

08/05/2016


































MOCIDADE
 
 
 
A mocidade esplêndida, vibrante,
Ardente, extraordinária, audaciosa.
Que vê num cardo a folha duma rosa,
Na gota de água o brilho dum diamante;
 
Essa que fez de mim Judeu Errante
Do espírito, a torrente caudalosa,
Dos vendavais irmã tempestuosa,
- Trago-a em mim vermelha, triunfante!
 
No meu sangue rubis correm dispersos:
Chamas subindo ao alto nos meus versos,
Papoilas nos meus lábios a florir!
 
Ama-me doida, estonteadoramente,
O meu Amor! que o coração da gente
É tão pequeno... e a vida, água a fugir...
 
 
Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"
 
 



















Fotografia de Fernando Pedrosa