10/02/2012

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JARDIM ZOOLÓGICO
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O meu nome é Pedro e tenho oito anos. Estou sentado no segundo degrau das escadas do meu prédio, a escrever num caderno com linhas. A minha professora disse-me para escrever durante as férias tudo o que fosse acontecendo à minha volta e é isso mesmo que eu faço. Olho, oiço e escrevo. O meu pai é que não gosta lá muito da ideia. Este miúdo devia é ir jogar à bola com os outros miúdos, a ver se aprende a ser homenzinho, em vez de se fechar no quarto a escrevinhar horas a fio naquele caderno, diz ele. E nessas alturas a minha mãe fica sempre com cara de zanga e as sobrancelhas assim todas esticadas para cima. Diz ela, deixa-o em paz, Tó-Zé, não vês que o nosso filho é dado aos estudos, assim pelo menos pode ser que saia menos burro do que o pai e sempre nos poupa o dinheiro que os outros miúdos gastam por causa dos vidros partidos. Depois continuam a discutir por outras razões lá deles e eu já não tenho paciência para os ouvir.

Vou buscar uma caneta à sala, onde a minha irmã mais nova e o meu avô continuam pregados à TV, a ver um programa qualquer com muitas bailarinas e um apresentador de sorriso estúpido que faz uma coisa esquisita com a voz. Saio para o quintal com o meu caderno e debaixo da árvore dos maracujás, que a minha avó plantou há muito tempo depois de uma viagem ao Brasil, mas que nunca deu frutos e se calhar não é uma árvore dos maracujás coisa nenhuma, eu cá acho que é uma árvore rara da Amazónia que a minha avó trouxe numa mala muito grande, às escondidas, sento-me debaixo dessa árvore, rara ou dos maracujás, não interessa, e fico na sombra a olhar para as páginas brancas do caderno de linhas e manchas de luz agitam-se sobre o papel. É então que me ponho a recordar tudo o que acontece dentro da nossa casa e depois transformo essas conversas, esses gestos, esses barulhos, em palavras que desenho aqui muito devagarinho, arredondando a letra como pede a professora.

Agora o caderno está quase a chegar ao fim e as férias também, o pai prometeu que ia connosco ao Jardim Zoológico esta tarde, mas a minha irmã preferiu ficar a ver desenhos animados ao lado do meu avô, que dorme e se baba no sofá, com a placa dos dentes fora do sítio, o pai prometeu-me e eu quero muito desenhar um elefante, um crocodilo, uma cobra venenosa e um leão no meu caderno, mas o pai nunca mais desce, está fechado na cozinha há três horas com a minha mãe e eu olho o postal que um dia a minha tia mandou de França, é um quadro que está no Museu do Louvre, acho que se escreve assim, uma jangada cheia de pessoas aflitas que querem chamar a atenção de um barco ao longe mas o barco não vê essas pessoas, é assim a nossa família, disse-me a tia, e agora vejo a minha mãe ao cimo das escadas, com os olhos vermelhos, o pai saiu pelas traseiras e eu já sei que não vai haver Jardim Zoológico para ninguém.
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José Mário Silva, in "Efeito Borboleta e Outras Histórias"
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Fts: Walter
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04/02/2012

Ode ao Sangue


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ODE AO SANGUE

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Nesta noite em que o coração incha a boca duramente,
Quisera ver o meu sangue a correr pelo chão:
A golpear o seu corpo de flor
- de solidão perdida e intolerável -
para manifestar-se com a angústia
e poder chorar a perdição dos dias,
a cor áspera das minhas veias cediças.
Se pudesse vê-la sem ânsia
a queimar o ar malfadado, impenetrável,
que move as tormentas secas da minha garganta
e aperta a minha pele incomparável;
não as marés, as ervas antigas,
toda a minha vida de eco incompreendido!
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Quisera conhecê-la esplêndida para viver fora de mim,
como um rio partido pelo vento,
como a vontade que só a alma reconhece.
Não aguardei por nada. Para que morada o ardor alheio
sairá alguma vez
a observar a memória desabitada, sem paraíso,
a luz interminável.
Quisera estar nu, só e feliz,
para arrebatar a sombra da morte
como uma enorme e aziaga nuvem destruída.
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Se um dia fôssemos estrangeiros,
capazes de ouvir o murmúrio da erva como um sedento hábito
peregrino,
limpos do humor corrupto,
cortaria as veias por amor
para que se escutasse o seu fluir;
para vestir meu corpo solitário
com o fogo lânguido.
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Mas não há-de chegar nunca esse tempo mágico,
como não chega a felicidade
onde não vive o esquecimento, a voz morta,
já apagada.
Nem mar, céu, flor, mulher: nada.
Ninguém a viu levar a rosa vulnerável,
o deserto extraviado entre bocas inúteis.
Que duro silêncio a envolve,
já não sei onde chega a vida
ou quer a abandoná-la
desprendida.
Onde se estreita a pele impossível,
o seu lento signo enigmático: chama de essência sem despedida.
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Chora através da carne,
cravada num fosso sem céu,
na noite desprezada
com a sua língua eterna.
Uma tristeza ampla regressa à vida sem cansaço;
encerrada no repouso.
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A morte imensa vela o sonho sem alvorada!
Ninguém sabe nada.
Eis o que existe. A ansiedade volta para dentro,
surda, detestável, apartada.
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Majestosa em seu mundo obscuro, regressa à sua raiz
indefinida, penetrante, solitária.
Talvez um rio, uma boca inesquecível
possam recordá-la.
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Do grande poeta argentino,
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Ricardo Molinari
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(1898-1996)
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TRAD: JORGE HENRIQUE BASTOS
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Fts: Walter
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