24/01/2012

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Vagabundos
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[Luar sobre os arrozais. Deitados numa pequena elevação, dois homens olham as constelações muito nítidas que se desenham no céu.]

- Quando ficas assim, parado, a olhar para cima, o que vês?
- O mesmo que tu.
- As estrelas?
-Não.
- O espaço negro entre elas?
-Também não.
- Então o quê?
- A memória da nossa fome.

[Um dos homens está agora sentado, com um pano aberto sobre os joelhos, a cortar fatias muito finas de pão seco e tiras de toucinho ainda mais finas. O outro olha fixamente para o movimento da faca, enquanto aconchega o seu casaco em farrapos.]

-Queres um bocado?
- Sim.
- O que é que me dás em troca?
- Deixa-me pensar. [Vasculha os bolsos vazios.]
- Sabes que tens que me dar qualquer coisa em troca.
- Sim, já calculava. Olha, posso dar-te uma história.
- Que história?
- É alegre?
- Não. Nada. Pelo contrário. É até muito triste.
- Então está bem. Podes começar. [Estende-lhe um naco de pão seco; o outro espreita o pouco que lhe coube, sem esconder o desalento.] Querias mais? Pois não protestes. Só levas o toucinho quando chegares ao fim.
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[Passaram quarenta minutos. Os dois acabam de comer. Parecem saciados.]
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- Muito boa, a tua história.
- Muito bom, o teu toucinho.
- Há muito tempo que não ouvia uma história tão trágica.
- Há muito tempo que não comia um toucinho tão bom.
- Mas como posso ter a certeza de que a tua história é mesmo verdadeira?
- Não podes, nem isso interessa. Eu também não sei se foste tu que mataste o porco.
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[Um dos homens levanta-se, aproxima-se do canavial, colhe um lírio. O outro encolhe-se, com frio.]
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- O que tens na mão? Um lírio?
- Não.
- Uma estrela?
- Não.
- O amor que perdeste há tantos anos?
- Não.
- A primeira palavra do teu último poema?
- Não.
- Um reflexo da manhã que se aproxima?
- Não.
- A própria ideia de brancura?
- Isso, amigo. A própria ideia de brancura.
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[Os dois homens voltam a deitar-se na pequena elevação, bebendo saké de uma garrafa opaca. Olham as constelações lá no alto, agora difusas. Luar sobre os arrozais.]
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José Mário Silva, in "Efeito Borboleta e Outras Histórias"
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Ao meu pestinha, com todo o meu carinho e ternura



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Fts: Walter
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